O lado “Tereza Cristina” dos fatos

Num dos últimos capítulos da novela global Fina Estampa, boa parte do Brasil assistiu a vilã Tereza Cristina denunciar anonimamente o restaurante do seu ex-marido à Vigilância Sanitária e, em seguida, também anonimamente, dar uma “dica” a um jornal sobre o que aconteceria na casa recém inaugurada pelo badalado chef de cozinha com quem fora casada. Como a personagem da bela Cristiane Torloni é uma psicopata com P maiúsculo, daquelas pra ninguém botar defeito mesmo, além de já ter garantido um cúmplice para “plantar” evidências incriminatórias nas despensas e freezers do restaurante, ela mesma fez questão de estar presente no local para, passando-se por uma cliente horrorizada, gravar um depoimento para o repórter que correu sedento para cobrir a “notícia”.

Assistindo aquelas cenas, lembrei dos episódios ocorridos no final do ano passado em hotéis 5 estrelas do Rio de Janeiro e de São Paulo que culminaram na prisão de chefs de cozinha e nutricionistas e repercutiram por todo o País causando, é claro, muita indignação no público em geral e muita estranheza aos profissionais da área e aos que conhecem a lógica que rege a função de um restaurante dentro de um hotel dessa categoria.

Explico: ao contrário dos outros restaurantes (os que não estão dentro de hotéis de alto padrão), um restaurante destes não tem como objetivo direto o lucro. Antes, ele é um serviço do próprio hotel para os seus hóspedes; boa parte das vezes é, ainda, um cartão de visitas que demonstra a categoria da bandeira do empreendimento, quase sempre multinacional. Por isso, de uma forma geral, é muito grande a preocupação com as boas práticas de higiene dentro destes estabelecimentos e existem equipes específicas de profissionais responsáveis pelo recebimento e controle das mercadorias, além de áreas destinadas apenas para este fim, em geral fora e longe das cozinhas.

Além disso, estão nos hotéis estrelados boa parte dos melhores profissionais do mercado, sejam brasileiros ou estrangeiros - gente que ganha excelentes salários e investe e zela muito bem pelo seu curriculum. Todos eles são submetidos a reciclagens constantes através de cursos, estágios, concursos e festivais gastronômicos em outros hotéis do grupo pelo mundo, além de, freqüentemente, recepcionarem grandes chefs estrangeiros em festivais gastronômicos por aqui. Assim, fica meio sem sentido esse tipo de coisa acontecer. Mas aconteceu.

Eu não conheço todos os chefs e hotéis envolvidos nos episódios citados, então não posso falar sobre eles e as empresas para as quais trabalham, embora eu imagine que a situação não fuja da realidade de profissionalismo e responsabilidade deste mercado. Entretanto eu conheço muito bem o hotel InterContinental São Paulo e, melhor ainda, o seu chef executivo. Ambos primam pela seriedade e empenho em oferecer o melhor. Não estou sozinha em dizer que ambos estão no top do profissionalismo, seja por que padrão isso se meça.

Assim, ao ler que uma denúncia anônima resultara numa blitz no hotel InterContinental São Paulo e na prisão do chef por conta disso, além de ficar muito triste, achei tudo muito estranho. Depois, soube que a única autuação efetuada dentro da cozinha foi por conta da presença de mofos característicos num presunto Pata Negra, embora o mesmo estivesse em excelentes condições de consumo e, inclusive, por excesso de zelo do chef, fosse armazenado em refrigerador mesmo com as especificações do produto não exigindo isso. No mais, na câmara frigorífica da área de recebimento de mercadorias (dois andares abaixo da cozinha), foram encontrados um queijo gruyère que fora comprado porcionado (apenas um pedaço) e no qual não constava etiqueta com a data em que fora cortado no fornecedor, algumas endívias (não me lembro exatamente quantas), e um pacote de 250 gramas de frutos do mar que, por estarem fora do prazo de validade, já estavam separados para descarte. Não deviam estar ali? É complicado afirmar isso, pois é dali que qualquer produto entra no hotel, ou volta para o fornecedor ou vai para o lixo. Então, se não estivessem ali onde deveriam estar?

O fato real e concreto é que dentro da cozinha só o Pata Negra conseguiu ser autuado pela polícia. Sim, porque no caso, a pretensa denúncia anônima não foi feita à Vigilância Sanitária, mas à Polícia do Consumidor, que, talvez, não tenha perfeitas condições de avaliar as características próprias de alguns alimentos. A Vigilância Sanitária esteve no hotel no dia seguinte e não encontrou nada que pudesse ser autuado (mas isso ninguém noticiou).

Enfim, foi vendo o jeito intimidador e pouco amistoso com que os fiscais da ficção imitaram a realidade que me lembrei de tudo isso e me lembrei, também, da tristeza com que um dos melhores e mais premiados profissionais da gastronomia brasileira, e um dos que eu mais admiro, me contou da dor de ser ver preso e indiciado num inquérito como se fosse um bandido.

Não consigo deixar de acreditar que tem algo muito errado quando a palavra de um anônimo tem mais peso do que uma carreira ilibada, seja na novela, seja na vida real. Também não consigo deixar de me incomodar com isso. É preciso estar muito atento ao lado “Tereza Cristina” dos fatos.

Virgínia Brandão
Editora do Correio Gourmand
www.correiogourmand.com.br

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